Ananias Martins
400 anos é uma datação da era humana que propicia muitos registros para os historiadores lapidarem. Cada povo de um lugar pode ter inúmeras abordagens e versões. Se for uma cidade, além de tudo, ressuscita temáticas como marcos iniciais e intermediários, e também transformações estruturais.
Como em muitos locais do mundo, em São Luís há um movimento de debate sobre fundação e desenvolvimento da cidade, iniciado recentemente. Há disponível uma pequena biblioteca da literatura histórica sobre o assunto, antiga e contemporânea, ou historiografia.
Os autores desta biblioteca, historiadores de profissão ou diletantes, pertenceram ou serviram, em cada tempo, a interesses específicos. São como a história, datados. Uma abordagem da cidade feita no século XIX por um membro da elite imperial provavelmente vem carregada de conceitos e preconceitos, de contextos. A rigor, dificilmente se encontrará, quanto mais distante no tempo histórico de nossa sociedade, um escrito que não seja de elite, pois poucos tinham acesso à escrita e à leitura.
Hoje, a história mais acessível e suas novas abordagens sobre a cidade trazem outras construções, culturalmente das novas gerações. Revisam-se documentos estudados, se encontra novas fontes não escritas, se procura outras classes e categorias sociais, entram os não privilegiados, e se refuta velhos escritos de historiadores e a história dominante de antes. Ainda assim, ao usar os antigos escritores, para em seguida contrapô-los, se credencia uma historiografia, como resultado de seu tempo.
Conservação e mudança é uma lei da qual não se foge, ou a história não seria eterna enquanto disciplina, que se renovará. E a cidade de São Luís não fugirá desta lógica, sendo demolida e reconstruída, diluída ou reagrupada em novas fronteiras, dentro da literatura histórica. Hoje há quem desconstrua a idéia de fundação no período francês.
De forma geral, cidades e países são fundados com “lugares do futuro” e não com a visão construída no passado. De um ponto qualquer onde estavam os pensadores da história estabeleceu-se o que foi a história anterior. Resumindo, são os chamados historiadores culpados da história de marcos fundadores existirem, mais que isso.
Se os quatro cantos da cidade disserem que comemorarão 400 anos da fundação de São Luís no ano de 2012, favorece a perpetuação de um mito antigo e a consagração dele, pois quatrocentos anos atrás não havia a cidade que conhecemos, mais certeiramente, nem havia cidade aqui. Há, porém, uma data na historiografia da fundação da cidade, 8 de setembro de 1612, de uma precisão inabalável, como se a urbes fora planejada, implantada e inaugurada.
A data referida de 1612 era, naquele momento, apenas um evento que compunha um conjunto de eventos que ocorreram no início do século XVII, na disputa por territórios nas Américas entre os europeus, no caso, um ritual católico dos franceses. Historiadores questionam se os franceses fizeram parte da fundação de São Luís, outros se há uma fundação definida.
Na botânica diferenciamos semente de árvore, apesar de a primeira gerar a segunda, ou não haver árvore que não tenha sido semente. Em termos mundiais, não há instituição geopolítica que não tenha ou não aceite um marco fundador, como se fora a “semente originária”; seja como o mito de Rômulo e Remo, seja por um decreto frio de gabinete sobre um território vazio, e outras diversas formas de fundação. No caso de São Luís, foram algumas décadas de construção historiográfica, fundamentada em documentos e interpretações não isentas de interesses, perpetuada para o cotidiano em discursos, aulas, publicações diversas, nomes de prédios, toponímia da cidade.
Vieses para a fundamentação histórica do marco inicial datado, conhecido atualmente, é o que não falta, dependendo da leitura interpretativa.
Escolha um terreno e plante uma semente: Imagine-se entrando em um grande mar oceânico, chegando numa vastidão de terras que gostaria de dominar, habitadas por diversos nativos, inóspitos ao projeto de conquista, e, ainda, o fato daquelas terras estarem sob o julgo de outra nação bélica, formalizado pelo Papa. Você percorre a vastidão, ancora em vários pontos, penínsulas, ilhas, cabos e finalmente escolhe um, onde vai ser o seu quartel general, ponto de apoio e construção do forte, por razões geopolíticas da época. Quatrocentos anos depois aquele lugar será resultado de algo que você plantou, mas não chegou a ver o que se tornaria. Sucessivos acontecimentos consolidam a sua escolha, se aproveitam de sua primeira estrutura e naquele lugar surge uma pequena cidade, 400 anos depois, a São Luís de hoje.
Esta versão, em forma simplificada de ocorrência histórica, lança São Luís nos quatrocentos anos de fundação. Prioriza o território escolhido e ocupado, o “marco inicial” ; condensa o “vir a ser” ao “ido”, num movimento quase anti-horário. Como Cronos (deus grego do tempo) que engole seus filhos, depois que nascem, num sentido horário. A história de uma ocorrência pretende engolir todos os pedacinhos que a criou, na ganância de ser abrangente. Contrapor-se a uma de suas versões é dar mais filhos para serem engolidos e confirmar um lugar de debate como legítimo.
Se a história desejar regredir mais, para definir a cidade a partir da ocupação nativa, dos tupinambás, se complica. O conceito de cidade ou burgo, tal como foi desenvolvido, é implantado pelas conquistas européias na América. Somente a conquista européia do território poderia lançar qualquer pilar para isso.
A fundação de uma cidade antiga no Brasil é quase sempre uma construção, que pode ter como referência uma feitoria, uma fazenda, um forte. Razão pela qual prefiro a São Luís quatro centenária, construída com sua data de fundação precisa, em um calendário também de construção datada, feito para o universo cristão ocidental.
De outro modo, é bom para história engajada nas discussões sociais que haja datas de mobilização da reflexão coletiva. Assim foi para os quinhentos anos do Brasil, onde todos se envolverem, mesmo os historiadores que não aceitam a chegada de Cabral como marco. Com esse argumento refletiu-se sobre que Brasil é este que construímos, e o que ele poderá ser no futuro. Foi além, mergulhando no pré-quinhentos, na história dos nativos, habitantes mais antigos, suas culturas e lutas hoje.
Se a Roma da loba mítica de 753 a.C. é ensinada ainda hoje às crianças das periferias da cidade nos livros didáticos, que São Luís tenha os seus longos anos igualmente registrados nos livros de história, sejam quais forem as versões historiográficas. Não se pode é ficar sem o registro, debate e principalmente popularização deste conhecimento de nossa civilização.
Quanto aos historiadores, é preciso questionar o ambiente ufano que muitos escritos tentam produzir sobre a cidade. Ela é construída somando lutas de incluídos contra excluídos e o inverso, de fratricídios, da higenização social das ruas pelas elites em diversos momentos, disputas territoriais, com desapropriações e ocupações, corrupção de dirigentes e diversos males urbanos. Mas foi e é lugar de abrigo, em ruas, feiras e espaços coletivos; referência e norteamento do citadino, identidade, lugar de construção de culturas.
Por sua vez, o leitor da história da cidade (e outras) não deve lhe atribuir somente beleza, nostalgia, epopéia, estética literária e narrativa fantástica de coisas do passado. O escrito da história da cidade às vezes é duro, trás crueldades cometidas, escravidões e pode ser cansativo. Entretanto, é uma das literaturas mais instrutivas da humanidade, estratégica na formação do cidadão e de grande valor para a erudição. Lembre-se que os historiadores da cidade, por mais que sejam culturalmente globais, são reféns do seu mundo, através de suas escritas, de suas teses e livros.
Ananias Martins é historiador. ananiasmartins@uol.com.br