Ferreira Gullar
Algo insistia em dizer que a intuição tinha fundamento, ou seja, o Brasil
não tinha mesmo presidente
Como não pretendo enunciar verdades indiscutíveis acerca de questões políticas
-nem de quaisquer outras-, dou-me o direito de especular livremente, atendendo
apenas a minhas intuições. E intuição -sabe-se como é- nasce não se sabe bem
como e chega aonde menos se espera.
Tudo isso é para dizer que, outro dia,
não sei por quê, fui surpreendido por este pensamento: "O Brasil não tem
presidente".
Espantei-me com a suposta descoberta, que, embora destituída de
comprovação objetiva, chegava-me com a certeza de uma verdade.
"Mas como?",
indaguei a mim mesmo. "E a Dilma Rousseff, não é a presidente do Brasil?" A
resposta objetiva foi que sim, o Brasil tem presidente, que, aliás, é
precisamente uma mulher, que se chama Dilma Rousseff.
E donde veio, então,
essa ideia estapafúrdia de que o Brasil não tem presidente? Vai ver -pensei- é
porque, como não votei nela, estou, inconscientemente, negando a sua presença no
governo.
Bem pode ser isso. E por alguns momentos achei que era, mas a
intuição de que o país não tinha presidente voltou e descartou a hipótese de que
se tratava de mero despeito meu.
Algo, dentro de mim, insistia em dizer que
aquela intuição tinha fundamento, ou seja, o Brasil não tinha mesmo
presidente.
Passei então a refletir sobre essa hipótese, já que a intuição,
se não é verdade consumada, pode ser o começo de uma revelação. Noutras
palavras, não é coisa de se jogar fora. Por isso, em vez de descartá-la, decidi
examiná-la, descobrir em que, afinal de contas, ela se baseava.
Esse foi o
meu propósito, mas, como se sabe, intuição não nos oferece dados objetivos, do
contrário não seria intuição, já seria conclusão.
Ainda assim, a alternativa
era ou buscar descobrir qual fundamento tinha aquilo ou simplesmente deixá-lo de
lado, ignorá-lo.
Só que isso não era tão fácil, pois se tratava de uma
intuição surpreendente, que envolvia a questão do poder no país.
Já imaginou
quais as consequências de concluir que a Presidência da República, ainda que
oficialmente ocupada, de fato está vaga? Essa reflexão, por si só, bastou para
me fazer mergulhar de vez na indagação da instigante hipótese.
Decidi
fixar-me nos dados objetivos relacionados com o assunto. Ali estava, diante de
meus olhos, a figura de Dilma Rousseff com a faixa presidencial cruzando-lhe o
busto, logo após receber de Lula o cargo supremo da nação: era de fato
presidente do Brasil.
Mas não só isso: os meses se passaram e ela veio
exercendo as funções presidenciais, seja assinando decretos, recebendo
representantes dos outros poderes, recepcionando chefes de Estado de outras
nações e, mais que isso, tomando decisões de caráter internacional, até mesmo
contrárias à orientação que imprimira à nossa política externa o presidente
anterior.
E, como se não bastasse, escreveu uma carta reconhecendo os
méritos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, coisa impensável num líder
petista. Como então dizer que não temos presidente?
E aí me detive: pois é,
como afirmar tal coisa? Em que se apoia, então, a intuição que me levou a
semelhante questionamento? Indaguei e fiquei esperando pela resposta que eu
próprio deveria dar.
E foi então que a resposta me veio, por voz outra, que
falou pela minha... Antes, porém, me surgiu num espanto esta constatação:
"Ninguém tem dúvida de que Obama é presidente dos Estados Unidos, mas e
Medvedev, ele é mesmo presidente da Rússia? Restam sérias dúvidas...".
E,
logo, a outra minha voz falou: "Sim, administrativamente, temos presidente. Ela
assina papéis, toma decisões. Mas, como não foi propriamente por identificar-se
com ela que o povo a elegeu -já que não tem uma história construída no corpo a
corpo com o eleitor nas ruas-, o seu poder é constitucional, mas meramente
formal. O que não quer dizer que fará mau governo. Mas que parece substituir
alguém, parece. É como se ocupasse, provisoriamente, o lugar do verdadeiro
presidente, que não se sabe quem é. Ou sabe?".
E fico na mesma: ela não
interveio no Ministério dos Transportes? Interveio, sim. Não obstante, continuo
a achar, sem explicação lógica, que não temos presidente. Ela administra, mas
não preside. É isso. Deve ser... Bom, deixa pra lá.
Da Folha de S. Paulo