8 de ago. de 2010

Ferreira Gullar e o espanto criador

     Ferreira Gullar, 80 anos em setembro próximo, é uma obra em progresso. Quando ainda era José Ribamar Ferreira, em São Luis, Maranhão, e compôs seu primeiro livro, o título já indicava que posição pretendia ocupar na poesia brasileira: “Um Pouco Acima do Chão”, editado com recursos próprios, foi publicado em 1949. Tinha 19 anos. Havia sido, até então, um poeta parnasiano. “Costumo dizer que eu nasci em Macondo, do livro ‘Cem Anos de Solidão’ de Garcia Márquez, onde tudo acontecia depois”, ironiza. “Em 1947 eu escrevia em decassílabos e dodecassílabos, tudo rimado e metrificado, como os parnasianos do século anterior”.
     Foi a leitura de “A Poesia até Agora”, de Carlos Drummond de Andrade, obra lançada em 1948, que provocou a ruptura. “Comecei a ler aquelas coisas – como ‘lua diurética’ – e me dei conta de quanto estava atrasado”, conta Gullar. “A partir daí, passei a fazer poesia em que não estivesse nada estabelecido e que eu próprio não soubesse o que iria acontecer; passei a fazer uma poesia em que a linguagem nascesse com o poema”, acrescenta. “Eu queria que minha poesia não fosse resultado de um saber a priori”, resume.
     Apresentado por Samuel Titan Jr., coordenador cultural do Instituto Moreira Salles atuando como mediador da Mesa 13, como “um autor inquieto, que sempre está voltando à raiz da sua poesia”, ele acredita que “a linguagem velha envelhece a coisa nova”. A dinâmica que marcaria sua obra começa a se mover com a mudança para o Rio de Janeiro, onde lança em 1954 o livro “Luta Corporal”, que desperta a atenção de jovens vanguardistas, entre eles alguns paulistas como os irmãos Augusto e Humberto de Campos e Décio Pignatari. “Eles acharam que esse livro era o sinal para uma renovação e nasceu a poesia concreta”, relata.
     Na conversa com o mediador e a plateia, Ferreira Gullar contou casos divertidos e reconstituiu sua trajetória, a partir desse primeiro contato direto com o que era a vanguarda pós movimento modernista. Em “Luta Corporal”, admite, fez uma poesia que ninguém entendia. “Eu havia destruído a sintaxe, queria chegar a uma poesia essencial”, explica. “Mas aconteceu que quando comecei a fazer poesia moderna, os outros voltaram aos sonetos”. A solidão de Macondo voltava a dominar.
     Na verdade, o poeta queria era ser artista plástico. Desde menino, na escola, quando recebia a tarefa de descrever as gravuras da sala de aula, seu desejo era pintar. “Ainda hoje leio mais sobre pintura do que sobre literatura, penso mais em pintura do que em literatura”, confessa. Mas a poesia se impôs. E ele deixou que acontecesse naturalmente. Seu processo de criação, revela, é o espanto.
     “Na verdade, não penso sobre poesia – faço poesia”, continua. “Ela nasce do espanto, é simplesmente uma coisa que me espanta, um estado de espírito, imprevisível”, pondera. O poeta imagina que exista uma tessitura especial que explica o mundo, “mas de vez em quando o mistério rompe esse tecido”. Como exemplo, citou a construção do poema “Acidente na Sala”, do livro que deverá ser lançado em setembro: “Estou na sala, me levanto para atender o telefone, e o osso do fêmur bate no da bacia. Eu penso, mas que é isso, um osso batendo dentro de mim? – Eu sou meu osso?”
     Mais de dez anos depois de sua última produção, “Muitas Vozes”, de 1999, nasce esse novo livro, “Em Alguma Parte Alguma” – uma contradição em termos, como ele mesmo explica, uma vez que “em alguma parte significa em algum lugar, e em parte alguma quer dizer em lugar nenhum”. Por que tanta demora entre as duas obras? – Ele repete seu mantra: “Se há espanto, escrevo”.
     A única vez em que o espanto durou foi quando ele compôs o “Poema Sujo”, que foi produzido em 1975, durante o exílio em Buenos Aires, circulou quase clandestinamente em áudio entre intelectuais e jornalistas do Rio e foi publicado no ano seguinte. “Fiquei de maio a setembro escrevendo e nunca havia passado tanto tempo em estado poético”, lembra. A obra mereceu de Clarisse Lispector a classificação de “escandalosamente belíssimo”. Ferreira Gullar seguiria conversando pelo resto da noite, mas a Festa Literária Internacional de Paraty tem que continuar. Ele encerra: “O poema é a alquimia que transforma dor em alegria estética. A arte existe porque a vida não basta. Cada um nasce com as qualidades que lhe permitam se inventar como ser humano. A poesia é necessária porque existe. Um dos melhores estados de estar vivendo é escrever poesia”, alinhou, sob os mais duradouros aplausos até aquele ponto da festa.
Da Flip

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