13 de mar. de 2011

Se a História tem lógica...

Ferreira Gullar
A AÇÃO do povo desorganizado no Oriente Médio tornou-se um fato dominante da atualidade política internacional, a exigir dos especialistas análises e interpretações nem sempre concordantes, mas que nos dão, no mínimo, a certeza de que ali se iniciou um momento novo de sua história.
    O assunto é complexo por muitas razões e, particularmente, porque cada um daqueles países tem composição social, histórica, cultural e política diversa, mas, às vezes, com fatores idênticos, indo desde os fatores religiosos até as divergências tribais. Seria ingênuo ignorar o peso que tem em tudo isso a riqueza petrolífera e as consequentes relações de interesses estabelecidos, em função disso, com as potências ocidentais. Daí o papel que tem exercido, sobre este ou aquele país da região, o poder econômico, político e militar, seja dos americanos, seja dos europeus.
    Em face de tão complexa realidade, os comentaristas se perguntam o que resultará dessa onda revolucionária que varre atualmente aquela região e que, ao que tudo indica, tende a se alastrar por todo o Oriente Médio e o norte da África.
    Uma questão frequente, nessas especulações, é saber que tipo de governo vai surgir após a derrubada dos regimes autoritários. Surgirão ali governos democráticos ou novas ditaduras?
    E ainda a pergunta que mais preocupa: pode acontecer que, como no Irã, criem-se naqueles países teocracias islâmicas dispostas a deflagrar, contra o Ocidente, uma guerra santa? Essa possibilidade abate o otimismo dos que veem com esperança a revolta popular naquela região. Embora não descartando definitivamente essa possibilidade, a maioria dos comentaristas a considera remota pelo fato de que as palavras de ordem dos revoltosos não envolvem questões religiosas: eles reivindicam direitos à cidadania e ao pleno exercício da liberdade política, econômica e cultural.
    Essa interpretação parece pertinente pelo fato mesmo de que a maioria dos promotores da revolta é constituída de jovens que, graças à internet, tomaram conhecimento de que uma sociedade mais aberta e mais moderna é possível. São jovens e desejam a felicidade de inventar sua própria vida.
    A esses dados acrescento algumas observações, que talvez ajudem a prever o desdobrar desse processo renovador. Pode ser esclarecedor lembrar que os regimes de países como o Egito e a Líbia nasceram da derrubada de monarquias apoiadas na fé religiosa e que foram substituídas por regimes supostamente identificados com o sentimento popular.
    Noutras palavras, um líder militar, seja Nasser ou Gaddafi, valendo-se do baixo nível de consciência política do povo e intitulando-se defensor do pan-arabismo, institui uma ditadura e se transforma em um novo "monarca". Travestido de salvador do povo, apropria-se dos meios que lhe permitem gozar de todos os privilégios, extensivos aos filhos, parentes e apaniguados, como uma nova corte. Assim, passa ele a falar não apenas em nome do povo mas em nome de Alá também.
    Gaddafi, por exemplo, veste-se como um personagem mítico que ora é um imperador, ora um beduíno, ora um marechal, dando-nos a impressão de que está prestes a desfilar na Marquês de Sapucaí.
    Não terá sido essa uma etapa inevitável por que teriam mesmo que passar aqueles países antes de alcançarem a democracia? Se esse raciocínio estiver certo, se a resposta for sim, dificilmente aqueles povos substituirão os mubaraks e os gaddafis por outros ditadores.
    O pan-arabismo acabou há muito tempo e a imagem dos salvadores da pátria se desfez. Construir no Oriente Médio regimes democráticos de verdade não vai ser fácil, mas é bem possível que a etapa agora seja essa.
    É um ponto de vista que talvez se justifique se levarmos em conta as circunstâncias históricas em que aquelas ditaduras se impuseram: era o período da Guerra Fria que, opondo o sistema capitalista e o sistema socialista, favorecia, especialmente naquela região, a exploração das teses anticapitalistas e antiocidentais. A aspiração a uma sociedade mais democrática e mais moderna se sobrepõe, nos dias de hoje, às questões religiosas e ideológicas.
Da Folha de S. Paulo

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