16 de mar. de 2010

Como nasce um imortal

Fabio Victor
da Folha de S. Paulo

     Eram 14h45 da última sexta quando um carro, escoltado por seguranças, estacionou em frente ao prédio da Academia Brasileira de Letras, no centro do Rio. Dele desceu Eros Grau, ministro do Supremo Tribunal Federal e candidato à cadeira 29 da ABL, vaga desde a morte do bibliófilo José Mindlin.

     Levava quatro livros numa mão e uma bengala na outra. Informada da visita horas antes por operadores de campanhas adversárias, a reportagem o aguardava e se identificou.

     Deu-se o seguinte diálogo: "Boa tarde, ministro". "Mas... o que é isso? Não vim à academia, vim no outro prédio." "Eu sei que o sr. vai se encontrar com a Ana Maria Machado [secretária-geral da ABL] às 15h." "Não faz isso." "Só quero ouvi-lo sobre a sua candidatura." "Não posso falar. Candidato não fala", finalizou Grau. E foi ao encontro de Ana Maria Machado.

     A eleição é em 2 de junho, mas a campanha já está a mil. Na verdade, começou antes mesmo da morte de Mindlin.


Um retumbante seria o poeta Ferreira Gullar, cuja candidatura foi lançada por admiradores. Ao declarar que estava cansado de dizer não à ABL, ele deu a entender que poderia ceder, mas agora afirma que não concorrerá. "O que fiz foi só me desculpar por não querer, não significa que sou candidato."
"Sou eleitor do Gullar, mas se ele entrar agora eu não voto, porque já estou com o Geraldo", ilustra Portella.


Candidato precisa "noivar" com ABL

     O ritmo de chumbo, a lentidão e solenidade comumente associados à Academia Brasileira de Letras convivem, durante uma campanha eleitoral na casa, com uma movimentação intensa, uma guerra de guerrilha na qual é fundamental conciliar habilidade política com discrição.

     "Uma eleição aqui obedece a elementos quase mozartianos. Não fica bem se expor muito, não há apreço por candidatos histriônicos, que quebram o ritmo natural da casa", afirma a ex-presidente Nélida Piñon, há 21 anos na ABL.

     Daí a agonia de Eros Grau ao ser flagrado numa "cena de campanha explícita". Nos bastidores, entretanto, ele e seus principais concorrentes -o poeta e diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti e o professor Muniz Sodré, presidente da Biblioteca Nacional- já trabalham há muito tempo. O quarto no páreo, com poucas chances, é o sambista Martinho da Vila.

     Não se espera mais pela "Sessão da Saudade" (a homenagem ao acadêmico morto) para iniciar a campanha, como manda a ética da ABL. Mindlin morreu num domingo cedo. "Antes de o sol se pôr", como conta o presidente da ABL, Marcos Vinicios Vilaça, postulantes já acionavam suas máquinas de campanha, com telefonemas e e-mails para acadêmicos.

     Punham em prática algo que já estava em gestação. A menos que seja alguém pronto a ser aclamado -e há poucos, como o crítico Antonio Candido-, é preciso "trabalhar" por anos uma candidatura: conhecer os acadêmicos, telefonar-lhes, ir às conferências da ABL etc.

     "O candidato tem que noivar primeiro com a academia, fazer a corte, participar de suas atividades", resume Cícero Sandroni, ocupante da cadeira 6.

     Cavalcanti, que além de obra própria em poesia é especialista em traduzir poetas italianos, já se inscrevera em 2006, mas desistira no caminho, e passou então a se aproximar mais dos acadêmicos. Neste momento é o favorito. Tem entre os cabos eleitorais o ex-ministro Eduardo Portella, segundo mais antigo na casa (entrou em 1981).

     Muniz Sodré, com inúmeros livros publicados sobre comunicação e cultura, achegou-se mais à ABL ao assumir a Biblioteca Nacional, em 2005. Sandroni e João Ubaldo Ribeiro são seus entusiastas.

     Pelo menos desde 2006, quando foi o orador de uma sessão em que o STF homenageou ministros da ABL, Grau ceva a candidatura. Livros jurídicos, como os que presenteou a Ana Maria Machado na sexta, formam a base de sua obra, mas publicou em 2007 um romance que une política e sexo, cujos trechos tórridos causaram furor em Brasília. José Sarney é um dos articuladores de seu nome entre os imortais.

     "Costumo dizer que uma eleição aqui é mais complicada que uma eleição florentina", diverte-se João Ubaldo, acadêmico desde 1993, que na última quinta era o único de jeans (e blazer) na sessão.

     O xadrez é de fato pesado. O cartunista Ziraldo, que já se inscreveu duas vezes a vagas na ABL (em uma delas desistiu no meio em favor de Mindlin), sondou agora os imortais sobre a intenção de concorrer de novo. Sentiu que os apoios já estavam costurados, e recuou.

     "O quadro já está muito claro, não vai aparecer mais nenhum candidato. Mesmo que surgisse um retumbante, mesmo que tivesse vindo da Galiléia, já estaria tarde para ele -já está todo mundo comprometido", problematiza Nélida.

     Um retumbante seria o poeta Ferreira Gullar, cuja candidatura foi lançada por admiradores. Ao declarar que estava cansado de dizer não à ABL, ele deu a entender que poderia ceder, mas agora afirma que não concorrerá. "O que fiz foi só me desculpar por não querer, não significa que sou candidato."

     "Sou eleitor do Gullar, mas se ele entrar agora eu não voto, porque já estou com o Geraldo", ilustra Portella.

     O caso de Fernando Henrique Cardoso -que fará palestra na ABL na quinta- também é uma amostra do quão intrincado é o processo. Com a morte de Mindlin, surgiram rumores de que desta vez o ex-presidente seria candidato. Ele ligou para Vilaça para negar. Entre os acadêmicos, há duas hipóteses: 1) seu nome foi levantado por adversários na própria ABL, justo para queimá-lo; 2) seus apoiadores na casa sondaram o terreno, viram que já estava delineado e o avisaram; ele então ligou para Vilaça para negar.

     Tal complexidade é o que enfraquece Martinho da Vila. A candidatura dele foi estimulada pelo presidente da ABL, Marcos Vilaça, que busca tornar a casa mais próxima do mundo real. Mas Martinho, dez livros publicados (parte infantil), se diz desconfortável em fazer a corte. Disse mal saber quem eram seus adversários.

     "Só vou à academia se me quiserem lá. Não vou fazer muita coisa. Tenho um amigo que cumpriu todo o roteiro, fez uns 15 jantares, e não se elegeu", afirma o músico, único candidato que aceitou dar entrevista.



Mais assíduos recebem R$ 9.000 por mês

     O que torna, afinal, uma cadeira na ABL tão concorrida e a eleição para a vaga tão renhida? ""Esta é a mais equilibrada das 14 que eu já vi", segundo a acadêmica Ana Maria Machado, secretária-geral e uma das mais influentes da casa.

     "Para mim o principal estímulo é o convívio. Onde vou encontrar esse conglomerado de inteligências? Pense na linhagem do poder. Essa casa já teve Machado [de Assis], [Joaquim] Nabuco, Euclydes [da Cunha], Rui Barbosa. Onde mais você encontraria essa plêiade de brasileiros?", opina Nélida Piñon.

     "Fiz uma lista com nomes que são apontados como cotados para a academia e cheguei a 44. Mostra que a casa tem sedução, mas também a banaliza. Difícil saber onde termina o prestígio e começa o desprestígio", analisa o presidente da ABL, Marcos Vinicios Vilaça.

     Para a maioria dos acadêmicos ouvidos, o que mais conta na decisão de concorrer são o prestígio e a troca intelectual.

     Mas há mais. Há um salário de R$ 3.000 (chamado de "representação") para todos e jetons por presença nas sessões às quintas (R$ 1.000) e conferências às terças (R$ 500). Antes das sessões, o imortal assina a lista de presença e, ato contínuo, recebe um pequeno envelope com a féria. Cash.

     Um acadêmico assíduo ganha, portanto, R$ 9.000 mensais, fora plano de saúde. Os diretores recebem um adicional e têm motorista à disposição.

Tema tabu

     Trata-se de um tema tabu entre os imortais. Quase todos, a começar de Vilaça, desconversam quando questionados sobre dinheiro, sob a alegação que a ABL é uma entidade privada e que tocar no assunto é picuinha. "Não passa pela minha cabeça que alguém queira entrar aqui por dinheiro", diz Vilaça.

     "Ninguém fala que a academia distribuiu R$ 5 milhões em prêmios nos últimos dez anos, dos livros que editamos, do polo cultural que temos. A imprensa não dá a mínima para essas coisas", queixa-se o ex-presidente Cícero Sandroni.

     "Fingem que não querem [a remuneração], mas adoram", provoca Eduardo Portella.

     Há também mimos eventuais. Recentemente, dentro da política de Vilaça de tornar a entidade "moderna sem ser modernosa", a ABL comprou cinco leitores de livros eletrônicos, que foram sorteados na sessão da última quinta.

Aluguel de imóveis

     Embora o presidente se recuse em informar a receita da ABL, é fácil supor que não é pequena. Vem principalmente do aluguel de imóveis próprios, a começar de um prédio de 29 andares que pertence à academia no centro do Rio (dos quais a academia usa só dois), repleto de salas comerciais.

     O edifício, chamado "Palácio Austregésilo de Athayde", em homenagem ao acadêmico que dirigiu a ABL e foi pródigo em arrecadar doações para a entidade, fica ao lado da sede antiga, o "Petit Trianon" das sessões e do chá das cinco. (Na quinta passada, além da infusão, havia frutas, tortas e biscoitos variados, sanduíches, almôndegas, queijo coalho e bolo de rolo, estes últimos uma exigência do pernambucano Vilaça.)

     Na ata da penúltima sessão (de 5 de março), publicada em boletim interno da academia ao qual a Folha teve acesso, está registrado que o presidente Vilaça "disse ainda que a ABL está renovando os contratos de locação do Palácio Austregésilo de Athayde com um incremento acima de 40%".

     Informa-se ali que "a ABL conseguiu algumas ajudas relevantes para romper a barreira das dificuldades". Bradesco Seguros e Previdência e Fiesp patrocinarão eventos da casa. Já com CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) e Sul América, a ABL "está em negociações". (FV)



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